sábado, outubro 25, 2008

Arte: "Nu sur un paysage jaune" © Juan Alberto

se eu pudesse moldar as manhãs
com minhas mãos de poeta
talvez elas tivessem as mesmas cores
mas certamente seriam diferentes

tiraria delas a pressa do ponteiro das horas
e também o cinza dos olhos
daqueles que enfrentam as ruas

se eu pudesse amassar com minhas mãos
o barro das manhãs
eu o moldaria ao meu jeito

certamente elas teriam os mesmos rostos,]
seríamos os mesmos a dividir o mesmo espaço
mas elas seriam diferentes

desarmaria espíritos
eliminaria labirintos
substituiria muros por pontes
e ensinaria a celebrar a vida
mesmo que ela amanheça todos os dias
pendurada por um mísero fio

© Ademir Antonio Bacca
do livro “O grito por dentro das palavras”
Arte: BAPTISTÃO
"Palavra puxa palavra, uma idéia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução, alguns dizem mesmo que assim é que a natureza compôs as suas espécies".
Machado de Assis
1839 - 1908
A palavra
tem a sede
do peixe

escapa sempre
do poeta
em folha rasa

vai ao fundo,
volta à tona,
respira
e escapa do poema
outra vez

© Ademir Antonio Bacca

Não sou nada.
Nunca serei nada, não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Fernando Pessoa
(1888/1935)
espólio

quando saí
da tua vida
levei pouca coisa,

uns sonhos
que não deram certo
e um vazio no peito
que não cabia
dentro da mala.

© Ademir Antonio Bacca
do livro “O Relógio de Alice”
Arte: FERNANDES
Fragilidade

Este verso, apenas um arabesco
em torno do elemento essencial - inatingível.
Fogem nuvens de verão, passam ares, navios, ondas,
e teu rosto é quase um espelho onde brinca o incerto movimento,
ai! já brincou, e tudo se fez imóvel, quantidades e quantidades
de sono se depositam sobre a terra esfacelada.
Não mais o desejo de explicar, e múltiplas palavras em feixe
subindo, e o espírito que escolhe, o olho que visita, a música
feita de depurações e depurações, a delicada modelagem
de um cristal de mil suspiros límpidos e frígidos: não mais
que um arabesco, apenas um arabesco
abraça as coisas, sem reduzi-las.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
in “A rosa do Povo”
“O trabalho intelectual arranca o homem à comunidade humana.
O trabalho manual, ao contrário, nos conduz para os homens.
Pena que eu não possa trabalhar na oficina ou no jardim.”

FRANZ KAFKA
1884-1924

dos apertos

o

do
teu
laço
desfaço
com
um
aperto
no
coração.

© Ademir Antonio Bacca
do livro “O Relógio de Alice”

do que fazer

Reinventar a vida
sempre que necessário

rever a infância
com os olhos do menino
que nunca encontrou a saída
de dentro de ti

reinventar o tempo
sempre que o relógio
parecer andar depressa demais

rever o verbo
toda vez que a palavra
não consola

ter sempre o sonho
na medida exata da pretensão
porque o poema sabe
da urgência da hora.

© Ademir Antonio Bacca

sei que nada sei

sei que de paixão
pouco ou nada sei
mas faço de conta
que sei de tudo
dou palpites e me meto
onde não sou chamado
troco os pés pelas mãos
e quebro sempre a cara
porque isso de amar
é um novelo confuso
que a gente vai se enrolando
do jeito que dá.

© Ademir Antonio Bacca
do livro “O Relógio de Alice”