AMADURECENDO
COM AS PEDRAS
Affonso
Romano de Sant’Anna
Do lado
de fora da casa, umas pedras. Muitas pedras. E de muitos tamanhos. Estamos
chegando na casa-ateliê de um escultor. Há também flores. Pedras e flores. E o
amor-perfeito, que floresce bem no inverno aqui em Bento Gonçalves. Entramos
nessa casa (fora da cidade) e damos de cara com um estúdio onde estão expostas
obras de Bez Batti .Os amigos o chamam de João, seu primeiro nome. Cabelos
brancos, simples.Dizem que foi carteiro. Conheciam-no apenas como o carteiro
João. Mas era um condenado à arte. As pedras o olhavam. Ele olhava as pedras.
Havia uma tensão amorosa entre eles. Um dia se encontrariam como a pedra e a
água que se moldam na correnteza do rio. Ontem ele esteve ao meu lado, calado,
assistindo à abertura do Festival Internacional de Poesia (onde homenagearam
Mariana Colasanti). As coisas sucediam no palco, poetas, atores e mímicos se
apresentavam e ele estava ali ao meu lado, mas eu não conhecia suas obras. Erro
meu. Tenho errado muito com meus desconhecimentos. Agora em sua casa/ateliê
constato: é um escultor visceral. E modesto. Trabalha no duro, sobre o
dificílimo, nessa pedra chamada basalto de cor escura, na verdade quase
intrabalhável. Ele diz que os egípcios esculpiam essa pedra, enquanto os gregos
preferiam o mármore. Mas o mármore é frágil, as esculturas gregas tem marcas
dessa destruição temporal. Andando pelo seu ateliê vendo a transformação que opera
sobre a matéria bruta, falamos sobre arte. Surpreendo-me: vejo sobre a mesa o
exemplar do “ O Enigma Vazio, que furtivamente autografo para ele. Guimarães
Rosa dizia aquela frase (que o Israel Vargas colocou em sua tese sobre física
nuclear: “quem mói no aspr’o não fantaseia”). A frase tem sabedoria, mas tirada
do contexto, pode ser contestada: o escultor que trabalha no “aspr’ o” também “
fantaseia” que nem o poeta. E Bez Batti, desanimado diante do que apresentam
como arte nas galerias e bienais, me pergunta: -Você acha que ainda pode haver
um novo Renascimento? Questão preenhe de dilacerações. Como seria bom que as
artes conhecessem novo florescimento! Como seria bom que saíssemos desse
“nonada” em que as artes se meteram no século XX e redescobríssimos o passado,
como fizeram os mestres do Renascimento! Bez Batti ama Matisse. Também acha que
Picasso pilhava obras alheias. Lembrei-me aquela frase de Picasso: “eu não
procuro, eu acho”. Claro, ele via o que Matisse, Juan Griz e Cézanne estavam
fazendo e fazia sua “releitura”. Com talento, claro. O que um poeta pode
aprender com um escultor? Quais as lições da pedra? Um dia, junto com Rubem
Braga, visitei o ateliê do escultor gaúcho Francisco Stockinger. E este disse
uma coisa que gravei: as pedras amadurecem. Há pedras verdes e maduras. O
problema é que temos pouco tempo de vida para ver as transformações milenares
da pedra. Uma vez no deserto de Atacama, no Chile, contemplei abismado as
pedras que ali estavam amadurecendo há milhões de anos. Quando eu desaparecer,
elas continuarão sua intemporal trajetória. Bez Batti nos mostra algo
assombroso. Uma pedra de milhões de anos que tem dentro de si uma poça d´agua.
Exatamente. Por sortilégios vários a água filtrou-se pedra adentro e ficou ali
retida. Assombroso: uma pedra com água dentro. A água se move atrás da
superfície polida da pedra. Há milhões e milhões de anos. O liquido e o sólido
num só corpo. Olho aquilo. Tomo a pedra com água dentro em minhas mãos. É uma
metáfora viva, a convivência dos opostos e dos elementos complementares. A
pedra tem lições a dar mesmo nos desertos. A água nos dá sempre lições de vida,
com seus ventos e tormentos. E prossegue nos esculpindo.
Estado de
Minas, 6.10.2013
Um comentário:
Fiquei em êxtase com a leitura da crônica, muitas informações. Entrelacei com o que ando estudando na última temporada, que são as ruínas das Missões, com os rastros da história através das pedras... e gostei mais ainda por que me sinto amadurecendo com elas... Parabéns a todos que estiveram envolvidos por este momento.
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