sexta-feira, abril 20, 2007

Arte: "On Stage" © Ben Goossens

COTIDIANO

Eu canto
a agonia do homem
que cai do andaime
no meio da tarde vazia
e a dor das mãos angustiadas
que não se encontram
na hora do adeus;

eu canto
as lágrimas de sangue
do palhaço crucificado
no centro do picadeiro
e a insensatez
do bêbado-equilibrista
que faz seu número
no meio da calçada
pra platéia nenhuma;

eu canto
a ingratidão do ofício
de juntar as peças
deste mosaico estranho
que resolveram batizar
de cotidiano.

© Ademir Antonio Bacca
do livro em preparo: “Panis et Circenses”
ABSTRATO 0149 © Adebach
Técnica: Fractal — Programa: Apophysis

veredicto

terão sido
completamente inúteis
as palavras que escrevi
em versos
de se perder a conta,
se não encontrar
a ponta do fio
que desate
todos os meus nós


© Ademir Antonio Bacca


POEMA VI

© PABLO NERUDA

Te recordo como eras no último outono.
Eras a boina cinza e o coração em calma.
Em teus olhos pelejavam as chamas do crepúsculo.
E as folhas caiam na água de tua alma.

Apegada a meus braços como uma trepadeira,
as folhas recolhiam tua voz lenta e em calma.
Figueira de estupor em que minha sede ardia.
Doce jacinto azul torcido sobre minha alma.

Sinto viajar teus olhos e é distante o outono:
boina cinza, voz de pássaro e coração de casa
fazia onde emigravam meus profundos anseios
e caiam meus beijos alegres como brasas.

Céu desde um navio. Campo desde os cerros.
Tua recordação é de luz, de fumaça, de tanque em calma!
Mais além de teus olhos ardiam os crepúsculos.
Folhas secas de outono giravam em tua alma.

(Retirado de: Vinte poemas de amor e uma canção desesperada)
Tradução: Maria Teresa Almeida Pina
pano de fundo

por trás destes olhos
perderam-se encantos tantos
de se perder a conta

quantos sonhos banharam-se
neste azul que enfeitiça?

quantas paixões naufragaram
em águas tão traiçoeiras?

por trás deste olhar
palavras desavisadas
estilhaçam-se feito vidro
no caminho de bala perdida.

© Ademir Antonio Bacca

de vez
em quando
meus olhos
se fazem
rio
por aquilo
que não
fui.

© Ademir Antonio Bacca
do livro “O Relógio de Alice”

desejos
são sementes
de sonhos
que espalhamos
pelas noites
insones.

por isso
tantas manhãs
de pura fantasia.

© Ademir Antonio Bacca

sexta-feira, abril 06, 2007


Arte: Manuel Lao

MURMÚRIO

CECILIA MEIRELES
1901 – 1964

Traze-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
— vê que nem te peço alegria.

Traze-me um pouco da alvura dos luares
que a noite sustenta no teu coração!
A alvura, apenas, dos ares:
— vê que nem te peço ilusão.

Traze-me um pouco da tua lembrança,
aroma perdido, saudade da flor!
— Vê que nem te digo — esperança!
— Vê que nem sequer sonho — amor!

(colaboração: Ângela Weingartner Becker)
Arte: Rui Duarte


“A língua é nossa pátria,
pobre e sofredora pátria,
tão mal-ensinada,
tão mal-aprendida,
inflada grotescamente
de estrangeirismos inúteis.”

JOSÉ SARAMAGO

batidas
de asas
inúteis

viagem
que não leva
a verso nenhum

a madrugada
se faz longa demais
para todo aquele
que tem pressa
de voar

© Ademir Antonio Bacca
do livro “O Relógio de Alice”
Arte: Henrique Rodrigues Pinto
“Estilo é a deficiência
que faz o sujeito escrever
sempre do mesmo jeito.”

MARIO QUINTANA
1906-1994

Abstrato 0148 © adebach/2007 - Técnica: Fractal
do encantamento

tuas asas abertas
sobre o meu corpo

© Ademir Antonio Bacca
do livro “O Relógio de Alice”
Arte: Restrepo
"Eu sou como um rio que continua a correr,
carregando as árvores que crescem muito perto dos bancos,
carcaças abandonadas
e as várias espécies de micróbios que proliferam em suas águas.
Eu absorvo tudo isso e continuo em meu caminho."

PABLO PICASSO
1881 / 1973

estiagem

quando
a fonte seca
é preciso
reativar
as vertentes

mesmo
que falte
vontade
para afastar
as pedras.

© Ademir Antonio Bacca
do livro “O Relógio de Alice”

“Se os líderes
lessem poesia,
seriam mais sábios.”

OCTÁVIO PAZ
1914 - 1998
tantas
as feridas abertas
sangrando à toa
na madrugada
de palavras rudes
e intenções de abandono

sangra a paixão
o gesto derradeiro
e eu me deixo ficar
quieto no meu canto
porque sei que de nada
serve um dia
que não me traga
uma surpresa sequer

© Ademir Antonio Bacca